EVENTOS PRIVADOS: O QUE, COMO E
POR QUE ESTUDAR1
Autor: Emmanuel Zagury Tourinho2
Todos os sistemas teóricos que se
apresentam como propostas de psicologia ocupam-se da análise dos
fenômenos subjetivos, ou, pelo menos, tentam justificar-se por
não fazê-lo. Há uma exigência neste sentido que não é
gratuita. O campo da psicologia constitui-se a partir de uma
valorização da experiência do indíviduo consigo mesmo, gerada
ao nível das práticas culturais, e responder a essa demanda
torna-se indispensável. O conceito de eventos privados é o
conceito básico com o qual o behaviorismo radical tenta
lidar com a problemática da subjetividade, ao mesmo tempo em que
sustenta uma projeto de psicologia como ciência do
comportamento.
Para um behaviorista radical,
sentimentos, pensamentos, emoções e cognições correspondem a
fenômenos que podem e devem ser analisados com os conceitos de
uma ciência do comportamento. A tentativa de explicá-los como
fenômenos comportamentais, e não mentais, diferencia a
abordagem behaviorista radical de outras versões de behaviorismo
(cf. Skinner, 1974).
Diferentes projetos de
constituição da psicologia como ciência do comportamento
postulam a existência de fenômenos cuja natureza se diferencia
daquela dos fenômenos comportamentais são behaviorismos
que veiculam uma visão mentalista acerca de eventos subjetivos;
isto vale, em alguma medida, para o behaviorismo de Watson, o
behaviorismo metodológico e o behaviorismo mediacional. Destes,
apenas o behaviorismo mediacional estará de fato interessado na
subjetividade; entretanto, o mentalismo veiculado em suas teorias
favorecerá mais o desenvolvimento de psicologias cognitivistas
do que o estabelecimento da psicologia como ciência do
comportamento. A originalidade da análise behaviorista radical
consiste, portanto, em incluir os fenômenos subjetivos no campo
de uma ciência do comportamento sem transitar para uma
concepção mentalista acerca do comportamento humano. Isso só
é possível quando se passa a interpretar sentimentos e
pensamentos como fenômenos propriamente comportamentais, isto
é, como fenômenos que se caracterizam por uma relação
do indivíduo com seu ambiente, especialmente seu ambiente
social.
O Conceito de Comportamento
A definição de comportamento
como relação é central para a interpretação behaviorista
radical. Ela indica que referências a eventos isolados, como
descrições topográficas de uma resposta ou descrições
físicas de uma condição ambiental não consistem em si de
descrições comportamentais. Não há uma descrição
comportamental quando se fala de uma dor em termos de um nervo
inflamado, ou de uma contração muscular (cf. Skinner,
1963/1969; Tourinho, Teixeira e Maciel, 1998). Também não se
tem uma descrição comportamental quando se afirma simplesmente
que um indivíduo pensou sobre algo. O nervo inflamado, a
contração muscular, e o pensar do indivíduo podem ser
considerados numa análise comportamental, mas enquanto elementos
de relações. No caso do comportamento operante, a
relação tem pelo menos três termos: um estímulo
discriminativo, uma resposta e um estímulo reforçador.
Portanto, falar daqueles eventos como constitutivos de um
fenômeno comportamental operante corresponde a localizá-los
numa relação do tipo SD --------à R --------à SR.
A definição de comportamento
como relação ainda não é tudo. Na proposta original de
Skinner, a uma ciência do comportamento cabe o estudo de
relações do organismo como um todo, com eventos que lhe são externos.
Quando se afirma, por exemplo, que "João foi ao Congresso
porque pensou que seria importante", tem-se uma relação,
mas uma relação insuficiente como descrição ou explicação
do comportamento. O comportamento de João não terá sido
explicado enquanto não for analisado o ambiente a sua volta;
enquanto não forem identificados os eventos ambientais aos quais
a resposta está relacionada, eventos que a produzem e a mantêm.
Pode-se então dizer que ao adotar
o comportamento como objeto de estudos, a análise do
comportamento trabalha com um recorte que é externalista
e relacional; e ao analisar sentimentos e pensamentos, seu
desafio será exatamente o de dar conta destes fenômenos
preservando aquele recorte.
Estímulos e Comportamentos Privados
Os problemas da subjetividade são
abordados na análise do comportamento com o conceito de
"eventos privados". Eventos privados podem ser
definidos como estímulos e respostas que ocorrem sob a pele do
indivíduo (cf. Skinner, 1945; 1953/1965; 1963/1969; 1974).
Enquanto estímulos e respostas, os eventos privados devem ser
vistos como constitutivos de relações. Nenhuma condição
privada é, em si mesma, um estímulo, assim como nenhuma ação
do organismo é suficiente para se falar de comportamento
privado. Um evento qualquer, por exemplo, uma contração
muscular, não é um estímulo até que seja parte de uma
relação. Assim também, a descrição de uma resposta verbal
encoberta não será suficiente antes que se indiquem as
relações desta resposta com estímulos controladores.
A expressão "sob a
pele" pode ser traduzida de diferentes modos. Nos textos de
Skinner e de outros analistas do comportamento, ora a expressão
significa interno, ora significa inacessível à
observação pública. Quando se fala de privado como
interno, a intenção é enfatizar as circunstâncias nas quais
eventos do próprio organismo afetam seu comportamento
subseqüente. Quando se fala do privado como inacessível à
observação pública, pretende-se enfatizar que um aspecto
especial daquele tipo de ocorrência é a impossibilidade de ser
observado de modo direto por outros indivíduos.
Pode-se apontar que a categoria
"interno" não coincide precisamente com a categoria
"inacessível à observação". Por exemplo, quando um
indivíduo descreve um evento passado, aquele evento é um
estímulo que controla parcialmente sua descrição e não está
acessível à observação pública direta. O evento tem uma
natureza pública, não está no interior de ninguém, e assim
mesmo não está acessível, no momento, à observação. Um caso
oposto é o de um nervo dentário inflamado, que é um evento
interno a um indivíduo, pode ser um estímulo para uma resposta
de dizer "Estou com dor", mas em muitas circunstâncias
pode estar acessível à observação pública direta (ainda que
afete o público de modo diferente daquele como afeta o próprio
sujeito). Resumindo, nem tudo que é inacessível a uma
observação pública é interno; e nem tudo que é interno é
inacessível à observação pública direta (cf. Tourinho,
1997a; 1997b).
Se não há coincidência entre
interioridade e inacessibilidade, por quê estas duas categorias
são sistematicamente associadas na definição e na análise dos
eventos privados? Uma possível resposta é a de que o uso
isolado de uma delas não seria suficiente para delimitar o
conjunto de problemas que estão sendo discutidos sob o conceito
de eventos privados. Ou seja, falar do privado como inacessível
à observação é insuficiente porque se está interessado em
apenas alguns dos eventos que são inacessíveis à observação.
E falar do privado como interno é insuficiente porque não
interessa apenas a localização do evento, mas as
circunstâncias nas quais esta localização dá origem a um
conjunto de problemas na instalação de certas respostas
discriminativas.
Eventos Privados e Eventos Fisiológicos
Se os eventos privados são
eventos constitutivos de relações comportamentais, eles não se
confundem com as condições corporais de um indivíduo. Por
exemplo, quando se fala da ansiedade de alguém como evento
comportamental, a referência não é a uma alteração em seu
batimento cardíaco ou em qualquer outra condição corporal, mas
a um processo que envolve uma classe de respostas sob controle
discriminativo de um conjunto de estímulos.
Para a análise do comportamento,
a história ambiental de um organismo, incluída aí a
filogênese e a ontogênese, é responsável por pelo menos dois
produtos: suas condições anátomo-fisiológicas e um
repertório comportamental, correspondente a probabilidades de
respostas. Como os dois produtos são paralelos, não se
confundem, nem são causa um do outro. Um não se explica pela
referência ao outro, mas apenas pela referência à história
ambiental. Por exemplo, se um aluno é submetido a contingências
aversivas dispostas pelo professor em sala de aula, pode-se supor
que, como resultado, haverá uma alteração corporal e uma
alteração em sua probabilidade de resposta. O aluno pode até
vir a discriminar a condição corporal e denominá-la de tensão
ou medo (adiante, esta possibilidade será melhor explicada).
Entretanto, seu comportamento de esquiva não se explica pela
tensão, mas pela exposição às contingências aversivas. A
tensão enquanto condição corporal, e a esquiva como
comportamento, são ambos produtos da exposição às
contingências aversivas.
Atualmente, tem sido mais
importante atentar para a diferença entre componentes
comportamentais e componentes biológicos dos problemas humanos
porque a cultura ocidental tem assistido a iniciativas que tendem
a dissimular os componentes comportamentais e sobrevalorizar os
componentes biológicos. Isto é o que ocorre, por exemplo,
quando se reduz a análise de comportamentos ditos de
"ansiedade" a componentes fisiológicos, e ignoram-se
ou dissimulam-se as contingências de reforçamento que
produziram tanto a alteração fisiológica quanto os
repertórios de "ansiedade". Manipulando o componente
fisiológico, pode-se até criar restrições ao organismo, mas
não se terá enfrentado propriamente o problema comportamental.
Portanto, quando se quiser tratar da ansiedade como um evento
privado, de uma perspectiva analítico-comportamental, o objeto
não será o conjunto de alterações fisiológicas do
indivíduo, mas a relação de certos repertórios com um
ambiente social. As alterações fisiológicas poderão até ter
alguma relevância ao analisar-se aquela relação, mas não se
confundem com a ansiedade enquanto fenômeno comportamental e,
como apontado anteriormente, não são a causa do comportamento.
Eventos Privados e Linguagem
Quando se aponta que uma
condição corporal pode ter relevância na análise de um
fenômeno comportamental que envolve eventos privados, isto
significa que ela pode participar do controle de uma resposta,
isto é, ela pode ser um estímulo privado, como explicado
anteriormente; neste caso, a condição corporal seria um
estímulo interno e inacessível à observação pública direta,
que participaria do controle discriminativo de uma resposta.
Ao tratar desta possibilidade,
Skinner destaca a importância da linguagem. Basicamente, seu
argumento é o de que apenas quando o indivíduo interage com
contingências dispostas pela comunidade verbal pode aprender a
responder sob controle de condições corporais. Apenas quando
ele vive numa sociedade na qual é freqüentemente indagado sobre
o que sente, é que adquire comportamentos descritivos de
sentimentos. Isso equivale a dizer que o indivíduo é dependente
da sociedade para conhecer a si mesmo. A dependência resulta da
impossibilidade do próprio indivíduo reforçar diferencialmente
suas respostas discriminativas (cf. Skinner, 1945).
Como a comunidade observa apenas
eventos públicos ao reforçar diferencialmente as resposta
auto-descritivas de um sujeito, não se pode dizer que a resposta
ficou sob controle de uma condição interna precisa. Por
exemplo, um indivíduo aprende a descrever-se como
"cansado" a partir de contingências dispostas pela
comunidade verbal. Estas contingências envolvem o reforçamento
da resposta verbal "estou cansado" quando a comunidade
observa alguns comportamentos públicos. A resposta "estou
cansado" corresponderá a uma condição interna apenas se
essa condição estiver consistentemente associada àqueles
comportamentos públicos que orientaram a ação da comunidade.
Por isso, quando um sujeito diz "estou cansado" sua
condição interna pode ser bastante diferente da condição
interna de um outro sujeito que se diz "cansado". O que
importa é que a condição interna de cada um está de algum
modo associada com padrões de comportamento a partir dos quais
todos atribuem cansaço a alguém.
Portanto, quando uma resposta é
controlada discriminativamente por um estímulo privado isso não
significa que se está diante de um comportamento que pode ser
explicado apenas pela indicação de eventos internos ao
indivíduo. Em poucas palavras, nenhuma condição corporal tem
autonomia para controlar discriminativamente uma resposta (cf.
Tourinho, 1997b).
Por que Estudar Eventos Privados
Embora falas sobre sentimentos e
pensamentos não sejam precisamente descrições de eventos
internos ou inacessíveis à observação pública, continua
válido o interesse pelo estudo dos eventos privados e pelo menos
três fortes motivos para isso podem ser enumerados.
O primeiro motivo é a própria
relevância do tema para a definição do campo da psicologia.
Uma análise de fatores históricos pode auxiliar na compreensão
das contingências culturais que favorecem discursos e práticas
relacionadas a sentimentos e pensamentos. A cultura ocidental, em
particular, produz indivíduos "introspectivos", os
ensina a falar de seus sentimentos como causas de seus
comportamentos e a comportar-se discriminativamente sob controle
destas falas. Uma ciência do comportamento pode discordar da
concepção de homem aí veiculada, mas não pode ignorar que as
relações aí produzidas são fenômenos comportamentais
relevantes.
Uma vez que os repertórios
autodescritivos se tornam tão importantes na cultura ocidental,
há um motivo adicional para o interesse pelo estudo dos eventos
privados. Muitas vezes as autodescrições estão parcialmente
sob controle de eventos privados; quando isso ocorre, uma
análise funcional pode indicar os modos particulares com que os
indivíduos interagem com suas alterações corporais e como
nesta interação vai se definindo sua privacidade. O componente
privado torna-se, neste caso, relevante para a compreensão da
autodescrição, do ponto de vista de sua gênese e de suas
funções.
Por último, também como função
das práticas culturais, algumas situações contemporaneamente
privilegiadas de aplicação da análise do comportamento são
situações nas quais a demanda é por um tipo de intervenção
que não pode prescindir da análise dos eventos privados. O caso
típico é o do atendimento clínico (cf. SantAnna, 1994),
mas essa demanda pode ter um alcance maior, por exemplo
envolvendo a intervenção no campo educacional.
Considerando que estas sejam
razões relevantes para o estudo dos eventos privados, cabe à
análise do comportamento encontrar modos de responder às
demandas produzidas pela cultura sem reproduzir o mentalismo que
lhe é característico. Mais do que isso, a análise do
comportamento pode tentar ao mesmo tempo reconhecer a
legitimidade daquelas demandas e promover práticas culturais que
favoreçam com maior eficácia a solução dos problemas humanos
e a sobrevivência da cultura.
O Estudo de Eventos Privados
Se os eventos privados são de
fato importantes para uma ciência do comportamento, como
torná-los objeto de estudos? Num conjunto de textos que discutem
o artigo publicado por Skinner em 1945 (Skinner, 1945), vários
autores (cf. Catania & Harnard, 1984) apontaram que o
esforço interpretativo de Skinner não havia sido correspondido
com pesquisa empírica que permitisse um avanço no tratamento
daqueles fenômenos. Ainda hoje, há pouca literatura sobre
eventos privados nos periódicos da análise do comportamento.
Portanto, não há modelos "consagrados" de
investigação, com o qual uma comunidade ampla esteja
pesquisando o assunto (cf. Anderson, Hawkins & Scotti, 1997).
Variedade e dispersão
caracterizam melhor tudo que pode ser encontrado em termos de
pesquisa sobre eventos privados. Na impossibilidade de cobrir
adequadamente esse campo, procurar-se-á resumir o que vem
fazendo o grupo de pesquisa que tem se dedicado ao tema, no Curso
de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Pará.
Parte-se do princípio de que os
métodos da análise do comportamento envolvem, pelo menos,
observação, experimentação e interpretação. Portanto, não
há uma limitação a estudos experimentais. Também considera-se
que as fronteiras entre o behaviorismo radical como filosofia, a
análise do comportamento como ciência, e a análise aplicada do
comportamento como tecnologia, podem ser muito imprecisas quando
se está lidando com uma problemática cuja formulação é ainda
precária. Desse modo, o grupo tem procurado estudar eventos
privados integrando trabalhos que serão aqui designados de: (a)
análises teórico-conceituais; (b) modelos interpretativos na
terapia comportamental; e (c) estudos descritivos ou
experimentais. Os três tipos de estudo estão representados na
Figura 1, a seguir, de modo a indicar que cada um pode situar-se
num vértice específico ou num ponto intermediário qualquer
entre dois ou três vértices.
Figura 1: Estudos que
abordam a temática dos eventos privados.
As análises teórico-conceituais
consistem de estudos que tentam circunscrever o estágio atual de
elaboração do tema dos eventos privados na análise do
comportamento, identificando lacunas ou inconsistências desta
elaboração, derivando conseqüências para a interpretação de
fenômenos correlatos, e propondo definições conceituais mais
precisas ou consistentes. Como exemplo deste tipo de trabalho ,
tem-se uma análise do próprio conceito de evento privado
(Tourinho, 1997a), uma revisão do conceito de ambiente interno
(Tourinho, 1997b) e uma discussão das fronteiras entre
fisiologia e análise do comportamento, no tratamento dos eventos
privados (Tourinho, Teixeira & Maciel, 1998). Em alguns
casos, as análises teórico-conceituais exigem a interlocução
com outros autores ou escolas de pensamento, com o intuito de
buscar, nesta interlocução, elementos para uma reflexão mais
aprofundada sobre os supostos analítico-comportamentais.
Mais próximos do vértice dos
modelos interpretativos na terapia comportamental há estudos que
visam demarcar o alcance de sistemas que orientam teoricamente a
intervenção clínica de terapeutas comportamentais e sua
compatibilidade com princípios da análise do comportamento,
particularmente aqueles relacionados à temática dos eventos
privados. Como exemplo, há os trabalhos de Cavalcante (1997;
1998) sobre a interpretação comportamental para a depressão e
sobre sistemas de classificação e diagnósticos na atividade
clínica e o trabalho de Costa & Tourinho (1998) sobre o
conceito de crenças em diferentes versões de behaviorismo e na
terapia cognitivo-comportamental.
Os estudos descritivos ou
experimentais constituem uma tentativa de investigação
empírica de problemas que envolvem eventos privados. Como
exemplo, há o trabalho de Santos (1998) sobre comportamentos
precorrentes em situações de resolução de problemas. A
pesquisa foi originada de uma preocupação com o tema do
pensamento enquanto comportamento encoberto, e investigou o
efeito de diferentes arranjos de contingências na produção dos
chamados comportamentos "preliminares". Este tipo de
estudo poderia ser situado entre o vértice das análises
teórico-conceituais e o dos estudos descritivos ou
experimentais. Um outro exemplo estaria situado entre os
vértices de modelos interpretativos na terapia comportamental e
estudos descritivos ou experimentais. Trata-se dos trabalhos de
Martins & Tourinho (1998) e Medeiros e Tourinho (1999), que
visam descrever e analisar falas sobre eventos privados de
terapeuta e cliente, em situação de atendimento clínico
comportamental.
Os trabalhos descritos abordam
relações que envolvem estímulos ou comportamentos encobertos,
ou modelos para a análise destas relações. Em algumas
circunstâncias, podem estar considerando relações que não
envolvem eventos propriamente privados, mas respostas verbais que
são usualmente consideradas descritivas de eventos desta
natureza. Isso ocorre porque nem sempre falas sobre pensamentos
ou sentimentos correspondem a fenômenos que envolvem eventos
internos ou inacessíveis. Neste caso, continua-se com a
problemática dos eventos privados, mas apontando
constrangimentos verbais para a possibilidade de sua
caracterização como eventos internos ou inacessíveis.
Para ilustrar a diversidade da
área, cumpre citar pelo menos dois tipos diferentes de pesquisa
que abarcam a problemática dos eventos privados. O primeiro é
na área de equivalência de estímulos. Há pesquisas que
investigam a participação de estímulos interoceptivos ou
proprioceptivos em classes de estímulos equivalentes (também
compostas por estímulos exteroceptivos). Trata-se de trabalhos
basicamente experimentais, que podem esclarecer em alguma medida
como eventos internos podem vir a controlar discriminativamente
certas respostas públicas (cf. DeGrandpre, Bickel & Higgins,
1992).
Um outro exemplo, particularmente
interessante por trazer inúmeras contribuições tanto para
área aplicada quanto para a área mais propriamente conceitual,
é a pesquisa desenvolvida por Malerbi (Malerbi, 1997; Malerbi e
Matos, 1998) com pacientes diabéticos. O trabalho consiste no
uso de um procedimento de treino para discriminação de
variações nas taxas de glicemia dos sujeitos. Através da
manipulação de contingências, a experimentadora obtém
discriminações razoáveis daquela condição corporal interna.
Seus dados evidenciam tanto a possibilidade daquelas
discriminações quanto os limites dentro dos quais isso é
possível.
Considerações Finais
Sintetizando o que foi abordado
até aqui, pode-se dizer que um quadro razoável do tratamento
behaviorista radical para o tema dos eventos privados envolve as
seguintes proposições:
As emoções enquanto problemas "psicológicos" dizem respeito às relações sociais - relações do organismo inteiro com o meio social. A inclusão de sentimentos e pensamentos no campo de uma ciência do comportamento não representa nem a adoção de um mentalismo, nem um reducionismo dos fenômenos comportamentais a fenômenos fisiológicos. A unidade de análise continua sendo o comportamento, compreendido como relação do organismo com variáveis que lhe são externas.
A referência a estímulos internos cumpre apenas a função de reconhecer que algumas respostas podem ficar parcial e circunstancialmente sob controle de uma condição corporal. A investigação de como essa possibilidade se efetiva possibilita uma melhor compreensão da auto-observação, ao mesmo tempo em que explicita porque uma condição estritamente pessoal e interna não pode autonomamente controlar discriminativamente uma resposta verbal.
A proposta externalista de análise do comportamento afasta tanto explicações mentalistas quanto explicações baseadas num apelo à (neuro)fisiologia do organismo. O desenvolvimento das neurociências pode contribuir para uma compreensão do fenômeno comportamental, na medida em que esclareça a base biológica das relações ambiente/comportamento; entretanto, explicações fisiológicas não substituem explicações comportamentais. A fisiologia é parte do organismo cujo comportamento deve ser explicado.
Os diferentes aspectos da
intepretação behaviorista radical aqui examinados não compõem
um quadro completo e suficiente para a análise dos eventos
privados. Isso se deve parcialmente ao fato de que o tema é
realmente difícil e a elaboração behaviorista radical não é
algo terminado. A interpretação apresentada contém, por outro
lado, as possibilidades de uma crítica consistente ao
individualismo psicológico, salientando o caráter social da
gênese, configuração e regulação da experiência privada ou
subjetiva cotidiana. A noção de que a subjetividade diz
respeito a algo essencialmente interior e pessoal do indivíduo,
conferindo-lhe autonomia diante da realidade, não encontra
nenhum suporte no behaviorismo radical. Ao contrário, uma de
suas contribuições para a crítica da cultura ocidental moderna
é precisamente a denúncia do caráter ilusório daquela visão
de homem.
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