Conferências

A família , a constituição do sujeito e o futuro da Humanidade

Autores: Ileno Izídio da Costa, (UnB)

"A FAMÍLIA, A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E O FUTURO DA HUMANIDADE"

Prof. Ileno Izídio da Costa

Resumo

Este artigo pretende problematizar a família em seu papel essencial na constituição da subjetividade do ser humano a partir dos paradigmas psicanalítico, sistêmico e da teoria da complexidade. Para tanto, é necessário interligar a família, a cultura, o espaço de interação cotidiano e temporal bem assim suas raízes históricas e inconscientes presentes na base desta constituição. Objetiva-se apresentar idéias básicas de origens psicanalítica (dinâmica, diacrônica, tais como a escolha do objeto, o eu familiar e a interfantasmatização) e sistêmica (funcionais, sincrônicas, tais como as noções de sistema aberto, subsistemas, homeostase, fronteiras, hierarquia, papéis, segredos e mitos, dentre outros) como forma de ensejar uma compreensão mais conseqüente do fenômeno primeiro da subjetividade humana: a família.

Sem perder de vista as transformações ocorridas na família no último século, apresentar-se-ão idéias sobre as mudança na interação familiar e suas conseqüências nas estruturação da saúde e das patologias do homem moderno e nas projeções do homem futuro. Buscar-se-á evidenciar a família enquanto instituição e meio - eficaz e contraditório - de compreensão para a solução e dispersão de velhos e novos problemas humanos.

PALAVRAS-CHAVES: Família, Subjetividade, Futuro

Abstracts

This article intends to query the essential role of the family in the constitution of the human being subjectivity from the psychoanalytical, systemic and of theory of complexity paradigms. It is necessary to link the family, the culture, the daily interaction space, time, historical and unconscious roots in the base of this constitution. It intends to present the basic psychoanalytic (dynamics, dyacronic, such as the choice of the object, the self family and the interfantasmatization) and systemic (functional, synchronous (such as the notions of open system, subsystem, homeostasis, borders, hierarchy, papers, secrets and myths) ideas as a way to more consequent understanding of the first phenomenon of the human subjectivity: the family. Under the transformations of the family in the last century, it will be presented ideas about the changing of the family interaction and its consequences in structuring of the health in the modern man's pathologies and in the future man's projections. It will be evidenced that the family while institution and relationship - effective and contradictory - is the best plecae for the solution and dispersion of new and old human problems.

KEY-WORDS: Family, Subjectivity, Future.

Este artigo pretende problematizar a "família" em seu papel essencial na constituição da subjetividade do ser humano a partir dos paradigmas psicanalítico, sistêmico e da teoria da complexidade. Para tanto, é necessário interligar a família, a cultura, o espaço de interação cotidiano e temporal, bem assim suas raízes históricas e inconscientes presentes na base desta constituição. De pronto, coloca-se o termo "família" entre aspas para questionar mais adiante se existe(m) família(s) ou "forma(s) de se relacionar que nos dá (ão) sentido de intimidade, de subjetividade, de ser algo no mundo". Ao final, procurar-se-á articular a família, seus atuais desenvolvimentos, o sujeito e um futuro possível entre ambos.

1. Tentando definir o que é família

A despeito da dificuldade teórica em definir a família enquanto entidade específica de abordagem, algumas discussões nas áreas da sociologia, antropologia e psicologia podem nos auxiliar a iniciar esta discussão. Alerta-se que não se pretende esgotar o assunto, mas antes inaugurá-lo.

Segundo André Michel (1983), o estudo da família nos anos setenta era quase que exclusivamente especialidade de demógrafos (estudavam a função reprodutiva da família), economistas (investigavam o consumo nos lares), etnólogos (descreviam as estruturas de parentesco), juristas (as leis relativas às famílias) e sociólogos (discutiam o funcionamento das famílias). Afirma que a abordagem sociológica predominante das famílias (a empiricista), nascida em reação às teorias mais antigas, incrementou-se nos EUA, URSS e países do Leste utilizando-se de 3 métodos básicos: experimentação (Strauss & Tallman, 1966 e Blood & Wolfe, 1960), investigação, em três gerações, das mudanças sociais e familiares (R. Hill et al., 1970) e estudos longitudinais (N. Berkeleu, 1928; Hill,1964).

As teorias mais antigas sobre a família, de características hipotético-comparativas e históricas, datam do final do século XIX e início do XX, foram particularmente desenvolvidas por Lewis Morgan (1871), Friederich Engels (1887), Westermack, Emile Durkheim, Marcel Mauss (1947), Ferdinand Tonies (1887) e até mesmo Sigmund Freud (1913).

Diversos autores atribuem a Lewis H. Morgan (1871), antropólogo e jurista norte-americano, fundador da antropologia moderna, o mérito de ter sublinhado a influência da sociedade na forma e na estrutura da família e a distinção entre formas diferentes e evolutivas de famílias. Enumerou seis estágios de desenvolvimentoda família: a) inicialmente predominava o estado selvagem com o "comércio sexual sem obstáculos"; b) depois, com cada homem pertencendo a cada mulher, e inversamente; que, ao evoluir, aparece a família consangüínea, fundada sobre o intercasamento de irmãos e irmãs, carnais e colaterais, no interior de um grupo; c) a família punaluana, baseada no casamento de várias irmãs, carnais e colaterais, com os maridos de cada uma das outras, no interior de um grupo; os maridos comuns não eram necessariamente parentes de um grupo; d) a família sindiásmica ou de casal, onde existia o casamento entre casais individuais, mas sem obrigação de coabitação exclusiva; o casamento prosseguia enquanto ambas as partes o desejassem; e) a família patriarcal, fundada sobre o casamento de um só homem com diversas mulheres, era geralmente acompanhado pelo isolamento das mulheres, e f) a família monogâmica, estribada no casamento de casais individuais, com obrigação de coabitação exclusiva.

Óbviamente que esta teoria, evolucionista por excelência e fruto de reflexões algo metafísica, apenas introduziu a milenar questão da origem primeira das famílias.

Friederich Engels (1887), baseando-se na teoria de Morgan e no materialismo histórico, analisou a família monogâmica e a propriedade privada conjuntamente, motivado pela idéia de demolir a ideologia burguesa anistórica. Engels postulou que "foi com a família patriarcal e a família individual, contemporâneas do desenvolvimento da propriedade privada, que a direção do lar perdeu o seu caráter público e se transformou em 'serviço privado': a mulher tornou-se uma primeira serva, desviada da participação na produção social... e a família individual moderna fundou-se no escravagismo doméstico, reconhecido ou dissimulado da mulher".

Por sua vez, Ferdinand Tonies (1887), pai da sociologia alemã, partiu da premissa "da perfeita unidade das vontades humanas como estado originário e natural", manifestadas sob múltiplas formas, em especial sob 3 espécies de relação familiar: 1. na relação mãe-filho (profundamente fundada sobre o puro instinto ou afeto); 2. na relação entre homem e mulher como cônjuges (onde o instinto sexual serve para poder assumir o caráter de relação duradoura e de afirmação recíproca, na mútua habitação), e 3. entre os que se reconheciam como irmãos e irmãs (onde não existe um afeto tão originário e instintivo, nem um reconhecimento recíproco tão natural).

Marcel Mauss (1947) fez notar que a "família conjugal" de fato existe em toda parte: os indivíduos sabem sempre qual é o seu verdadeiro pai, qual a sua verdadeira mãe, que distinguem ainda depois de sua morte; as relações de afeto, e outras, são sempre mais estreitas entre pais e filhos verdadeiros". Assim pensando, este autor distingue a família conjugal de fato da família de direito.

Na linha das teorias da reconstrução histórico-hipotética dos agrupamentos humanos, Sigmund Freud (1913), em seu trabalho "Totem e Tabu", descreveu a cena de um banquete totêmico de um clã que mata cruelmente o seu animal-totem (pai) e o devora cru. Depois do fato consumado, o animal morto é lamentado e pranteado, embora desencadeie a festa dos instintos e a admissão de qualquer satisfação, principalmente do desejo sexual pela mãe ou irmã, numa solene violação da proibição. E conclui que "a psicanálise revelou que o animal totêmico é, na realidade, um substituto do pai e isto entra em acordo com o fato contraditório de que, embora a morte do animal seja em regra proibida, sua matança, no entanto, é uma ocasião festiva — com o fato de que ele é morto e, entretanto, pranteado. A atitude emocional ambivalente, que até hoje caracteriza o complexo-pai em nossos filhos e com tanta freqüência persiste na vida adulta, parece estender-se ao animal totêmico em sua capacidade de substituto do pai."

Talcot Parsons (1970), sociólogo, fez uma análise da família norte-americana examinando a terminologia do parentesco como guia da estrutura social. Definiu-a como um "sistema aberto, multilinear e conjugal". A família conjugal seria composta por pais e filhos, e a eles se atem a palavra "família", reservando o termo "parente" para todos os outros membros ligados pela condição de parentesco. A definição "conjugal" tem como base o "tabu do incesto", o que determina portanto a busca de um cônjuge fora do grupo familiar.

Ralph Linton (1970), antropólogo inglês, assinalou que o termo família se aplica a duas unidades sociais basicamente diferentes: a "família conjugal", composta pelos cônjuges e descendentes, e "família consangüínea" ao grupo difuso e pouco organizado de parentes consangüíneos.

Por sua vez, Radcliffe-Brown (1978), antropólogo inglês, centrou sua discussão na natureza do parentesco, denominando "família elementar" como o conjunto formado por um homem, sua esposa e filhos ou filhas. Desta feita, a "família elementar" tem três tipos de relações sociais: a) de 1a. ordem: que se dão entre pais e filhos ou entre os filhos dos mesmos pais; ou entre marido e mulher enquanto pais dos mesmos filhos; b) de 2a. ordem: aquelas que a família elementar tem por meio de um membro comum com outra família elementar - o irmão da mãe, o irmão do marido, a irmã da mulher; e c) de 3a. ordem: que se tem por meio do filho do irmão do pai, a mulher do irmão da mãe.

O renomado antropólogo Claude Levi-Strauss (1982) assinala que a estrutura elementar do parentesco inclui três tipos de relações familiares: 1) a relação de consaguinidade (entre irmão e irmã); 2) a relação de aliança (entre marido e mulher) e 3) a relação de filiação (entre progenitor e filho).

Articulando suas formulações com a questão da estrutura inconsciente, Levi-Straus chega a uma definição do grupo familiar como sendo "um sistema relacional entre duas famílias, assentada na proibição do incesto como regra reguladora do intercâmbio do grupo que, para renovar-se, precisa da aliança heterossexual", sendo o casamento somente um dos múltiplos aspectos da troca entre grupos humanos que podem contrair aliança graças a essa regra da exogamia.

Mais especificamente, em seu texto "A família", Levy Strauss (1972), define que a palavra família serviria para "designar um grupo social possuidor de, pelo menos, três características: (1) tem sua origem no casamento; (2) é constituído pelo marido, pela esposa e pelos filhos provenientes de sua união, conquanto seja lícito conceber que outros parentes possam encontrar o seu lugar próximo ao núcleo do grupo; (3) os membros da família estão unidos entre si por (a) laços legais, (b) direitos e obrigações econômicas, religiosas ou de outra espécie, (c) um entrelaçamento definido de direitos e proibições sexuais, e uma quantidade variada e diversificada de sentimentos psicológicos, tais como amor, afeto, respeito, medo", dentre outros.

No âmbito da Psicologia Social, Lyman C. Wynne (1980) definiu a unidade familiar como aquela que inclui pais e filhos. Esta definição, exclusivamente operacional, estava baseada nas propostas do programa de investigação sobre as famílias de pacientes esquizofrênicos do "National Institute of Mental Health". Pragmaticamente, esta definição serviu ao intuito da operacionalização imediata, buscando pesquisar a resolução do conflito familiar manifesto.

Don D. Jackson (1968) definiu "família" como "uma rede interatuante de comunicações, na qual todos os membros, do bebê de dias de idade até o avô de 70 anos, influenciam a natureza de todo o sistema e são, por sua vez, influenciados por estes."

Jay Haley (1971), um dos fundadores da terapia familiar, afirmou que "a família é um tipo especial de sistema, por possuir uma história, isto é, um passado e um futuro. Não podemos, portanto, restringir a família aos relacionamentos consangüíneos.

Virgínia Satir, a assistente social precursora do movimento de terapia familiar nos EUA, em 1967, definiu família "como um grupo composto por adultos de ambos os sexos, que vivem sob o mesmo teto e têm um relacionamento sexual socialmente aceitável. O grupo é mantido unido por funções que se reforçam mutuamente e que incluem as necessidades sexuais e procriativas, assim como a transmissão de valores culturais, especialmente o de ensinar os filhos a desenvolverem maturidade emocional. Seu objetivo é a criação, sustento e direcionamento de seus membros".

Nathan Ackerman (1958), psiquiatra e precursor da terapia familiar norte-americana, caracterizou a família como um organismo composto da fusão dos fatores biológicos, psicológicos, sociais e econômicos. "Biologicamente, a família serve para perpetuar a espécie. É a unidade básica da sociedade. Psicologicamente, os membros estão ligados por mútua interdependência para a satisfação de suas respectivas necessidades afetivas. Economicamente, eles estão ligados por mútua interdependência para assegurar necessidades materiais. Socialmente, a família tem as funções de assegurar a sobrevivência física e construir a humanidade essencial do homem".

Murray Bowen (1971), um dos teóricos seminais da terapia familiar, entendeu a família como "uma entidade complexa, constituída por uma série de sistemas e subsistemas entrelaçados. Basicamente, é um sistema de relacionamento emocional cujas raízes podem ser encontradas na natureza biológica do homem. Além disso, para entender determinada família nuclear, é necessário trazer à superfície a família que a originou". Perguntado sobre o que é família, certa feita, Bowen afirmou: a "família é tudo"!

Segundo Isidoro Berenstein (1984), autor argentino de orientação psicanalítica, a família é "um sistema com uma estrutura inconsciente", baseando-se portanto numa concepção oposta à memória, com significação não registrada na consciência. Desse modo, a estrutura inconsciente familiar corresponde a "um modelo no qual combinam-se os membros, de acordo com um projeto, geralmente eficaz e que tem prescrições de um estado ao outro da estrutura e que não passa pela consciência dos integrantes... ou que não é considerado como determinante da estrutura atual.

Analía Kornblit (1984), discutindo o mesmo construto psicodinâmico, enfatizou que estrutura é "uma entidade autônoma de relações internas, constituídas em hierarquias". A estrutura familiar, assim, caracterizar-se-ia pela combinação de três funções: a materna ou continente, tal como desenvolvida por Bion et al; a paterna, que garante a ruptura da díade mãe-filho, facilitando ao segundo o acesso à ordem simbólica; e a filial, que concretiza as possibilidades geradoras-criadoras dos pais, garantindo a continuidade do grupo específico e social.

Diante de toda esta discussão, e não à sua revelia, desenvolveu-se a área específica de estudo e compreensão sistêmica da realidade familiar como um novo paradigma, em especial o questionamento epistemológico da época em que se estudava a Teoria dos Jogos, dos Tipos Lógicos, da Comunicação e Geral dos Sistemas. Esta evolução epistemológica permitiu, por exemplo, que conceitos como o de sistemas e suas configurações pudessem ser incluídas na discussão científica, aprimorando e acrescentando elementos fundamentais à compreensão do fenômeno família.

Em 1965, Ludwig Von-Bertallanffy introduziu a noção de sistema nas ciências e inaugurou as condições para o desenvolvimento de uma teoria que pudesse dar uma compreensão ampla sobre a realidade, em especial sobre a família. Bertalanffy (1968) definiu sistema como sendo "o conjunto de elementos colocados em interação", não sendo constituído portanto por partes independentes, mas, antes, por partes interdependentes, o que constitui uma unidade ampla, inteira. As ações e comportamentos de um dos membros influenciam e simultaneamente são influenciados pelos comportamentos de todos os outros".

Os primeiros conceitos da cibernética, tais como globalidade, não somatividade, retroalimentação ou feed-back e eqüifinalidade, além de morfogênese/morfostase, auto-poiesis, dentre outos, vieram dar à discussão da realidade familiar, enquanto sistema, não só um caráter epistemológico específico, que não o conhecido e desgastado modelo linear, mas também uma dimensão teórica e terapêutica mais ampla nesta discussão particular.

2. Sobre a complexidade do tema

A despeito de tantas (ou tentativas de) definições, ressalta-se a incompletude de todas elas. Muitas falam de aspectos específicos da relação familiar, outras de características gerais. Nenhuma, portanto, é globalizante. Sabemos, hoje, porque: o fenômeno chamado família é uma das grandes manifestações da complexidade humana e, como tal, definições atualmente limitadas não podem abarcar o fenômeno como um todo. A teoria sistêmica no entanto procura avançar no sentido desta complexidade.

Edgar Morin (1991), um dos precursores do estudo da complexidade, afirma que "a complexidade é uma palavra problema e não uma palavra solução". Assim, "a complexidade aparece certamente onde o pensamento simplificador falha, mas integra nela tudo o que põe ordem, clareza, distinção, precisão no conhecimento. Enquanto o pensamento simplificador desintegra a complexidade do real, o pensamento complexo integra o mais possível os modos simplificadores de pensar, mas recusa as consequencias mutiladoras, redutoras, unidimensionais e, finalmente, ilusórias de uma simplificação que se toma pelo reflexo do que há de real na realidade."

E continua: "A ambição do pensamento complexo é dar conta das articulações entre domínios disciplinares, que são quebrados pelo pensamento disjuntivo; este isola o que ele separa e oculta tudo o que o liga, interage, interfere. Neste sentido o pensamento complexo aspira ao conhecimento muti-dimensional. Mas sabe que o conhecimento completo é impossível: um dos axiomas da complexidade é a impossibilidade, mesmo em teoria, de uma omnisciência."

Afirmando que "vivemos sob o império dos princípios de disjunção, de redução e de abstração", cujo conjunto denominou de "paradigma simplificador", Morin chega a uma contundente definição da "inteligência cega": aquela "que destrói os conjuntos e as totalidades, isola todos os objetos à sua volta; não pode conceber o elo inseparável entre o observador e a coisa observada; onde as realidades chaves são desintegradas e passam entre as fendas que separam as disciplinas." E conclui: "enquanto a mídia produz o baixo cretinismo, a Universidade produz o alto cretinismo. A metodologia dominante produz um obscurantismo acrescido, uma vez que já não há associação entre os elementos disjuntivos do saber, já não há possibilidade de os reunir e de refletir sobre eles."

O que seria então a complexidade? Morin responde: "À primeira vista, a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido em conjunto) de constituintes heterogêneos inseparávelmente associados. A complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomenal. Então a complexidade apresenta-se com os traços inquietantes da confusão, do inextrincável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza..."

Não há, portanto, como abarcar a complexidade das relações íntimas familiares em algumas poucas definições, em especial hoje quando está cada vez maior a gama de relações familiares bem como de transformações que este tipo de vínculo vem sofrendo.

3. Uma tentativa de complexificação

Se nos valermos de dois dos grandes sistemas psicológicos e terapêuticos atuais, a psicanálise e a teoria sistêmica, poderemos detalhar um pouco mais este tipo de vínculo chamado família. Situo a "família" como sendo o encontro de dois eixos fundamentais: o sincrônico, que fala do aqui-e-agora, do modo de funcionamento concreto, imediato e lida com a dimensão consciente da relação; e o diacrônico, dinâmico, histórico, aprofundado e mais voltado para o funcionamento inconsciente.

Alberto Eiguer (1985), teórico francês de grupo e de família de orientação psicanalítica, nos ajuda a detalhar o eixo diacrônico quando, em seu livro "Um divã para a família", descreve os três organizadores fundamentas do relacionamento familiar, a saber:

a escolha do objeto, que consiste na escolha inconsciente do parceiro conjugal com base nas experiências edípicas. E esclarece: "pelo jogo duplo do amor intenso e incestuoso e sua proibição, a família prepara o sujeito para investir num outro vínculo, que dará origem a uma nova família... O objeto inconsciente de um se entrecruza com o objeto inconsciente do outro e os dois objetos acumulados inauguram um mundo objetal compartilhado, "reunião" nova que adota uma dimensão organizadora".

Jürg Willi, outro teórico (vienense) de orientação psicanalítica, cunhou o termo colusão para denominar o "jogo inconsciente dos parceiros". A colusão, portanto, é a dinâmica emocional e relacional que se estabelece a partir da escolha inconsciente que engendra um jogo particular de gratificações ou não, a partir das experiências infantis, especialmente do édipo, conforme Eiguer também salienta. Eiguer chega a detalhar pelo menos três tipos de escolha objetal que, por motivos de concisão, apenas citarei: edípica, anaclítica e narcisista.. Já Willi fala em colusão narcísica, oral, anal, fálica e genital, sendo fiel aos estágios de desenvolvimento pulsional descritos por Freud.

o eu familiar: "investimento perceptual de cada membro da família, que lhe permite reconhecê-la como sua, numa continuidade têmporo-espacial". Este organizador é composto de "sub-organizadores", a saber: sentimento de pertença ou "familiaridade", habitat interior e os ideais do ego;

a interfantamatização: "ponto de encontro dos fantasmas individuais de cada membro, fantasmas próximos por seu conteúdo. Desejos convergentes, jogo combinatório que é mais que uma adição pura e simples, esta interfantasmatização inconsciente inspira a atividade fantasmática consciente, isto é, a criação de um espaço transicional de intercâmbios, de humor, de criatividade, de relatos referentes à própria história de cada um e dos ancestrais".

Quanto ao eixo sincrônico quem nos ajudar a entender a complexidade desta dimensão familiar é a teoria sistêmica. Por limitações, apresentaria este eixo com a tentativa de definir família incluindo os diversos conceitos que as diferentes abordagens sistêmicas da família desenvolveram:

Um sistema aberto (aberto na medida em que caracteriza um fluxo contínuo de material componente, que, no caso da família, se expressa na troca de relações com outros sistemas: famílias extensas, escolas, empregos, grupos religiosos, enfim com a sociedade);

constituído de subsistemas ou holons (partículas ou partes). Na família existem os subsistemas a) individual que, segundo Minuchin (1990), incorpora o conceito de Self no contexto e inclui os determinantes pessoais e históricos (fala especificamente de cada indivíduo na relação), b) conjugal (relações homem-mulher), cuja tarefa básica é o desenvolvimento de limites que protege os esposos, dando-lhes uma área de satisfação de suas próprias necessidades psicológicas sem a intrusão de outros indivíduos, c) parental (este homem e esta mulher enquanto pai e mãe), cujas transações envolvem a educação dos filhos e funções de socialização conjugada ao subsistema filial (as crianças enquanto filhos daqueles pais), cada um com tarefas específicas, e d) fraterno (os filhos enquanto irmãos entre si), onde desenvolvem seus próprios padrões transacionais para negociação, cooperação e competição;

caracterizado por um estado interno relativamente constante ou auto-equilibrado que se mantém pela autorregulação (homeostase) que não significa estagnação, mas antes reflete as transformações em seus padrões de interação;

e composto por hierarquia, fronteiras ou limites, regras, papéis e comunicação;

articulados em sua essência pelos segredos e mitos;

além de estar, sistêmicamente ligado aos macrosistemas (social, econômico, político, universal, e, quiçá, espiritual).

Volto a enfatizar que a "família" concreta, real, imediata, e ao mesmo tempo inconsciente e histórica, deve ser entendida na confluência destes dois eixos.

Não poderia de deixar de enfatizar a contribuição da teoria transgeracional, como um dos exemplos de confluência teórica e prática entre as teorias psicanalítica e sistêmica.

Os fenômenos transgeracionais foram estudados particularmente por Murray Bowen (1978), Ivan Boszomenyi-Nagy (1973) e Helm Stierlin (1970), todos terapeutas familiares. Básicamente, estes autores defendem que a família produz e reproduz, simbólica e biológicamente, os conteúdos essenciais da existência humana.

Conceitos tais como delegação ("missão encomendada"), legado ("repasse não cumprido desta missão") e processo de projeção familiar ("processo de projetar nos filhos aquilo que não foi resolvido ou aceito a nível da(s) geração(ções) anterior(es)") explicitam a passagem de conteúdos emocionais e simbólicos para as gerações seguintes. E pretendem dar contexto mais amplo, transgeracional, à formação da sociedade, da família e dos sujeitos.

Desenvolvimentos atuais da teoria sistêmica tem contribuído para complexificar este fenômeno, tais como o construtivismo e construcionismo social. Do ponto de vista da "família", concordando com Hoffman (1990) afirmaria que "o problema cria um 'sistema'". Ou seja, a família se estrutura e se torna realidade objetiva a partir das problematizações que se desenvolvem em seu ciclo de vida. A "família" se estrutura (cria um sistema de funcionamento) em torno de como as diferentes etapas de seu desenvolvimento vão se estabelecendo. Se incluirmos aqui, para desespero dos teóricos puristas, os organizadores inconscientes familiar, teremos que estes criam problemas específicos e engendradores de relações múltiplas.

Do ponto de vista construtivista, diria que a "família" se organiza e funciona em torno de problematizações. A idéia principal aqui é a de que não há uma crença na realidade objetiva a priori, mas em uma realidade co-construída. Conforme enfatiza Seixas (1992), "esta posição epistemológica privilegia a operação ativa de construção que o sujeito faz do que será seu "universo", ao mesmo tempo que emerge como sujeito no mesmo processo de construção".

Isto posto, podemos afirmar que "cada família é uma família" na medida em que cria seus problemas particulares e estrutura suas formas específicas de lidar uns com os outros, com suas próprias percepções sobre este universo e com o mundo externo, concreto, além de seus vínculos. Ouso dizer que não existe a "família" enquanto conceito único e globalizador, como as definições sociológicas, antropológicas e mesmo psicólogicas pretenderam em décadas anteriores. Afirmo, assim, que não existem "famílias", mas configurações vinculares íntimas que dão sentimento de pertença, habitat, ideais, escolhas, fantasmas, limites, papéis, regras e modos de comunicar que podem (ou não) se diferenciar das demais relações sociais do indivíduo humano no mundo. Está lançada aqui a base para a reflexão sobre o futuro da humanidade, conforme adiante esboçado.

Para além da tentativa, excessivamente moralizadora, de definir a família enquanto padrão único para que se possa analisar e até julgar as demais, havemos de evoluir para a consideração particular de cada tipo de configuração vincular íntima, do tipo familiar, como única e detentora de suas especificidades.

4. A "família" e a constituição da subjetividade humana

Muito se tem falado da individualidade, inclusive de seu culto, da subjetividade e suas problemáticas particulares. Desnecessário dizer que a família é o locus privilegiado da constituição da subjetividade humana. Tomando como base a definição, mesmo que dicionarista, de que a subjetividade é relativo ao sujeito ou existente no sujeito, a família é definidora, norteadora e contenedora da história subjetiva do indivíduo.

Dora Schnitman (1996) defende que "tanto a ciência quanto a cultura são processos construtores de e construídos por processos sociais. E continua: "A ciência, os processos culturais e a subjetividade humana estão socialmente construídos, recursivamente interconectados: constituem um sistema aberto. Precisamente, destas interfaces, de suas contextualizações e conflitos surgem aquelas configurações científico-culturais complexas que conformam e caracterizam o espírito que atravessa uma época. Sem dúvida, essas configurações transversais são mutidimensionais; não são nem homogêneas nem estáticas, e sim apresentam polarizações antinômicas e densidade diversas"... "Distinções tradicionais como as de sujeito-objeto, as barreiras disciplinares entre as ciências, a ciência e a filosofia, não só aludem a objetos que não podem ser estudados sem participação dos observadores/autores, como são construções sociais levadas a cabo por uma sociedade científico-cultural e, portanto, podem e devem ser interrogadas e eventualmente questionadas".

Freud (1930), no texto "O Mal-estar na civilização", Freud contempla a família ao escrever: "... três fontes de que nosso sofrimento provém: o poder superior da natureza, a fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos serem humanos na família, no Estado e na sociedade. E acrescenta: "... Quanto à terceira fonte, a fonte social do sofrimento, nossa atitude é diferente. Não a admitimos de modo algum; não poderemos perceber por que os regulamentos estabelecidos por nós mesmos não representam, ao contrário, proteção e benefício para cada um de nós. Contudo, quando consideramos o quanto fomos mal sucedidos exatamente neste campo de prevenção do sofrimento, surge em nós a suspeita de que também aqui é possível jazer, por trás deste fato, uma parcela da natureza inconquistável – dessa vez, uma parcela de nossa própria constituição psíquica" (1974:105).

Aqui, portanto, focalizo o mal estar e a conseqüente construção da (angustiante) subjetividade humana: na família.

E Freud continua, afirmando que a "incompatibilidade entre amor e civilização parece inevitável e sua razão não é imediatamente reconhecível. Expressa-se a princípio como um conflito entre a família e a comunidade maior a que o indivíduo pertence. Já percebemos que um dos principais esforços da civilização é reunir as pessoas em grandes unidades. Mas a família não abandona o indivíduo. Quanto mais estreitamente os membros de uma família se achem mutuamente ligados, com mais freqüência tendem a se apartarem dos outros e mais difícil lhes é ingressar no círculo mais amplo da cidade" (1974:124/5).

Em termos gerais diria que compartilho das definições de sujeito e subjetividade elaboradas por Ogden (1996): "Embora nenhuma palavra possa conter em si a multiplicidade, ambiguidade e especificidade de sentido necessárias, o termo sujeito parece particularmente adequado para transmitir a concepção psicanalítica do ‘eu’ que experencia, tanto num sentido fenomenológico quanto metapsicológico. O termo está etmológicamente ligado à palavra subjetividade e traz em si uma reflexividade semântica inerente, ou seja, denota simultaneamente sujeito e objeto, eu e isso, eu e mim. A palavra sujeito se refere tanto ao "eu" como quem fala, pensa, escreve, lê, percebe, etc., quanto ao objeto da subjetividade... Assim sendo, o sujeito nunca pode estar totalmente separado do objeto e, portanto, nunca pode estar inteiramente centrado nele mesmo".

Por coerência teórica, creio ser importante afirmar que a angústia humana é a mola fundamental e propulsora da subjetivação/subjetividade do ser humano... O que situa esta discussão (angústia/subjetivação/subjetividade) da gestação à morte do sujeito! Angústia, portanto, que perpassa o relacionamento familiar.

Com estas passagens, enfatizaria que a construção (ou constituição) da subjetividade humana tem duas vertentes (mínimas) hoje indispensáveis: o inconsciente e o relacional. Assim, nossos desejos, medos, capacidade (ou não) de amar, manter-se vivo e em equilíbrio (ou não) são parte inconteste das configurações vinculares do tipo familiar.

5. Família, sujeito e o futuro da humanidade

Dito tudo isto, creio que podemos questionar a "família", ou a configuração vincular do tipo familiar, em suas funções e características tradicionais ou básicas. Tomarei as definições de Virgínia Satir e de Nathan Ackerman, citadas na introdução deste trabalho, ambas dos anos setenta, para uma reflexão maior vez que guardam ressonâncias nas definições "comuns" de família, além de participarem, como tal, de nosso imaginário geral até hoje.

Satir define, inicialmente, que "família" é "um grupo composto por adultos de ambos os sexos". De pronto, dois questionamentos: 1. este grupo, que chamaria de tipo de configuração vincular, hoje não mais conta adultos de ambos os sexos. Hoje, muitas das formas de relacionamento familiar são composta por um só dos pais (monoparentais), particularmente a mãe. São as famílias de mães (ou pais) solteiros, cônjuges abandonados, separados ou viúvos; 2. Se a definição acima privilegia a procriação ou o intercurso sexual que gera filhos, hoje temos um fenômeno recente, que cresce em quantidade e interesse, que são as "famílias homossexuais", que redefiniria como "os relacionamentos vinculares entre pessoas de mesmo sexo com desejo de construírem um modo familiar de se relacionar"; assim, a obrigatoriedade de adultos de ambos os sexos pode ser descartada seja pela adoção, seja pela fecundação in vitro. Sem falar, dos homossexuais que se casam, separam, assumem sua opção sexual e se mantém nos papéis parentais (de pai e mãe).

A segunda parte da definição também é hoje curiosa: "que vivem sob o mesmo teto". A obrigatoriedade de "convivência sob o mesmo teto" como condição para definição de família não é mais exclusiva ou a regra. São inúmeros os casais separados que exercem a (complexa) função parental, sem no entanto coabitarem. Este modelo monogâmico e conjugal sofreu e ainda está sofrendo contundentes transformações. São inúmeros os casais (e família) que vivem em casas separadas e tem filhos em comum. Além do que hoje está em franco crescimento as famílias e casais recasados, com filhos do relacionamento anterior e atual, numa tentativa complexa de construir um relacionamento ou uma configuração vincular que lhes dê sentido de intimidade, pertinência e diferenciação.

A terceira parte, além de tradicional, como já foi dito acima sobre "adultos de ambos os sexos", tem um caráter normatizador e até moral: "têm um relacionamento sexual socialmente aceitável". Aqui o parâmetro passa a ser o da heterossexualidade (redução do indivíduo à sua opção e prática sexual) e da "normalidade", "socialmente aceita". As transformações sociais (tais como os hippies nos anos sessenta, a revolução sexual e o feminismo), em especial as de gênero e as sexuais em si, já bombarderam esta condição de definição de família.

"Que incluem as necessidades sexuais e procriativas", continua a definição. Com a desvinculação das "necessidades sexuais" da "procriação", em especial do desejo e do prazer independente da função geradora, nem a prática sexual nem a procriação são mais condições exclusivas de organização de relações familiares.

Novamente a definição de Satir apresenta, a meu ver, uma construção que não a diferencia de outros agrupamentos ou configurações vinculares: a "transmissão de valores culturais, especialmente o de ensinar os filhos a desenvolverem maturidade emocional". Creio que podemos afirmar que tanto a transmissão de valores quanto o desenvolvimento da maturidade emocional, seja no nível funcional (saúde) ou disfuncional (patologia), hoje estão diluídos em diferentes agrupamentos sociais: amigos, escolas, famílias "escolhidas emocionalmente" (diferente da biológica), instituições, identificações com grupos musicais, religiosos, culturais, etc.

No termo seguinte também persiste uma construção que não é particular do relacionamento familiar: "seu objetivo é a criação, sustento e direcionamento de seus membros". Hoje, muitas instituições sociais tentam ou herdam a função de criação, sustento e direcionamento dos indivíduos humanos. A família, tal como a vimos definindo e esperando que cumpra papel específico, não só vem perdendo determinadas prioridades de estruturação humana como vem se revelando incapaz, em determinados casos, de estruturar uma humanidade possível, longe das atrocidades e desvios atuais.

A definição de Ackerman, por sua vez, incorre nas, hoje, mesmas imprecisões (pelo menos conceituais). No sentido estritamente biológico, em continuidade ao argumento apresentado sobre a definição de Satir, não há mais a necessidade de uma família para se promover a existência ou a continuidade da espécie. Os avanços da genética e da inseminação artificial por si sós são, hoje, capazes de garantir a existência humana.

Quanto a ser "a unidade básica da sociedade", hoje em especial, esta característica está diluída nas diferentes e complexas características de ser "unidade básica da construção emocional do ser humano", na "unidade básica da construção de sentido de existir", e na "unidade básica de uma humanidade possível".

Os demais termos da definição ("psicologicamente: ligados por mútua interdependência para a satisfação de suas respectivas necessidades afetivas; economicamente: ligados por mútua interdependência para assegurar necessidades materiais; socialmente: assegurar a sobrevivência física e construir a humanidade essencial do homem") creio já estarem discutidos anteriormente.

Gostaria, finalmente, de expressar alguns entendimentos que, creio, expressam as transformações, mudanças e perspectivas sobre a configuração vincular chamada família.

Entendo que família, seja em que nível de configuração vincular existir abrange algumas características, a saber: repetição e continuidade, construção dos afetos e das emoções humanas (da saúde à patologia), sentimento de pertinência, de "eu" e de existência,sentido de intimidade, pertinência e diferenciação.

Assim, podemos afirmar que está em curso uma diluição dos papéis clássicos da famílias em diferentes configurações relacionais humano, sejam em novas formas de ser família, seja com a substituição dos vínculos familiares por outros vínculos sociais (amigos, adotivos, trabalho, cultura, novas organizações relacionais etc) que dão sentido e pertinência ao subjetivo do ser humano.

Sem querer ser contudente ou catastrófico, como o foram Cooper, Laing e Hoffman, dentre outros, diria que não existe "a família" enquanto conceito único, universal, aplicável a todas as manifestações vinculares do tipo familiar. A "família", seja ela qual for, tenha a configuração que tiver, é, e será, o meio relacional básico para as relações com o mundo, da norma à transgressão dela, da saúde à patologia, do amor ao ódio.

Assim, diria que deve prevalecer a tendência de que a família não é uma "relação obrigatória", mas antes uma dentre outras possibilidades que dão sentido ao "ser humano". Atitudes psicologistas, sociologistas, moralistas e legistas não são capazes de abarcar a complexidade destaa estruturação possível a partir das múltiplas configurações vinculares humanas, da família real aos amigos, da adotada à que se queria.

A meu ver, as transformações da "família" e, em conseqüência do ser humano, apontam para a necessidade de reorganização do direcionamento afetivo dos sujeitos humanos para diferentes e complexos sistemas de relacionamento. O que significa dizer que deverá haver um maior intercâmbio relacional humano, com aumento das experiências possíveis de subjetividade, bem assim uma intensificação da busca de satisfação, do prazer e da evolução em outras configurações vinculares.

Para tanto, creio, teremos que trilhar o caminho, necessário, da diluição dos preconceitos e dos valores rigidificados, tradicionalistas, para que o ser humano possa exercitar suas complexas capacidades ainda não exploradas em face das limitações, repressões, construções de desvio e patologias que acabam por não corresponder ao seu anseio de sua própria felicidade.

Em minha opinião isto significa, também, trilhar o caminho da desalienação da capacidade de amar, ou de outra forma, do exercício de amar em multi-vínculos, até que se conclua que o amor, por princípio primeiro, deva ser exercido onde se aprende a evoluir emocional, pessoal e até espiritualmente.

Conclui-se, portanto, que a "família", tal como hoje é concebida, conceituada e aceita, é um meio - eficaz e contraditório - de compreensão para a solução e dispersão de velhos e novos problemas humanos.

Poder-se-ia questionar ainda os conceitos de casamento, vínculos consangüíneos, de aliança e de filiação como definidores do que seja "família". Mas, por concisão, apenas apontaria que todos eles estão sobre "intenso bombardeio relacional e social", perdendo, por conseqüência, a força supostamente efetiva para definir o que seja "família". Somente ilustrando, poderia afirmar que: "casar não significa ser família"; ter laços consangüíneos não significa sentir-se "parte da família"; os laços de aliança são, hoje, questionáveis, e os laços de filiação dependem muito mais de uma construção conjunta do que uma condição a priori. Aliás, todos eles dependem de uma co-construção!

O futuro, dizem, a Deus pertence. Mas é só refletirmos como nos organizamos, sofremos e nos relacionarmos para que possamos, senão prever, pelo menos antever, nossos desenvolvimentos. Atentemos menos para o conceito de "família" e estejamos mais preparados para suas transformações, diversidades vinculares e suas possibilidades de construção do crescimento humano.

6. Bibliografia

ACKERMAN, N. W. (1986). Diagnóstico e tratamento das relações familiares. Ed. Artes Médicas Sul, RS.

BATESON, G. et al (1980). Interacción familiar. Ediciones Buenos Aires, Argentina.

BERENSTEIN, I. (1984). Familia e enfermedad mental. Editorial Paidós, Argentina.

BERTALANFFY, L. Von (1977). Teoria Geral dos Sistemas. 3ª Ed. Ed. Vozes, RJ.

BOSZORMENYI-NAGY, I. & SPARK, G. (1973). Invisible Loyalties. Harper & Row Ed, New York, USA.

BOWEN, M. (1989). La terapia familiar en la practica clinica. Vols. I e II. Editorial Desclée de Brouwer, Bilbao. Espanha.

BUCHER, J. S. N. F. (1985). Mitos, segredos e ritos na família. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 1(2);110/17. Universidade de Brasília, DF.

COSTA, I. I. (1990). A crise psicótica do filho e a disfunção familiar. Revista Família*-Temas de Terapia Familiar e Ciências Sociais da Fundação Projeto Diferente de Fortaleza.CE.

__________. (1990). Família e psicose: um estudo transgeracional. Dissertação de mestrado não publicada. Brasília, DF.

__________. (1998). As doenças do amor relacional. Trabalho inédito apresentado no III Congresso Brasileiro de Terapia Familiar, Rio de Janeiro.

__________. (inédito). Família e psicose: teoria, pesquisa e clínica. Brasília, DF.

EIGUER, A . (1985). Um divã para a família. Ed. Artes Médicas Sul, RS.

FREUD, S. (1960/80). Mal estar na civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Ed. Imago, SP.

___________________. Totem e tabu. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Ed. Imago, SP.

GOOLISHIAN, H. & WINDERMAN, L. (1989). Construtivismo, auto poiesis y sistemas determinados pelo problema. Sistemas Familiares, Dez, pg. 19/29..

HOFFMAN, L. (1990). Una posición construtivista para la terapia familiar. In Sistemas Familiares, pg. 29/44, Buenos Aires, Argentina.

KAËS, R. (1986). Las organizaciones psíquicos del grupo. Revista de Psicologia y Psicoterapia de Grupo, XII, 3-4.

LEVY STRAUSS, C. (1982). As estruturas elementares do parentesco. Ed. Vozes, RJ.

_________________. (1972). A família. In Homem, Cultura e Sociedade, Harry L. Shapiro, Fundo de Cultura, RJ.

MALDAVSKY, D. 91993). Processos e estruturas vinculares. Ed. Artes Médicas Sul, RS.

MIERMONT, J. (1994). Dicionário de terapias familiares. Ed. Artes Médicas Sul, RS.

MINUCHIN, S. (1984). Família, funcionamento e tratamento. Ed. Artes Médicas Sul, RS.

MORIN, E. (1991). Introdução ao pensamento complexo. Instituto Piaget, Lisboa, Portugal.

OGDEN, T. (1996). Os sujeitos da psicanálise. Casa do Psicólogo Liv. e Ed. Ltda., SP.

SCHNITMAN, D. F. (Org, 1996). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Ed. Artes Médicas Sul, RS.

SEIXAS, M. R. D' A. (1992). Sociodrama familiar sistêmico. Ed. ALEPH, SP.

STIERLIN, H.; RÜCKER-EMBDEN, I.; WETZEL, N. & WIRSCHING, M. (1981). Terapia de familia. La primeira entrevista. Gedisa S/A . Barcelona, Espanha.