Conferências

Violência Doméstica contra crianças e adolescentes

Autores: Maria Amélia Azevedo, (USP)

 

Infância e Violência Fatal em Família:

Requiem para as Pequenas Vítimas Pequenas ou

Crônicas de Morte Anunciada?

Drª Maria Amélia Azevedo

Professora Titular do Instituto de Psicologia da Usp (Ipusp)

Coordenadora do Laboratório de Estudos da Criança (Lacri/Ipusp)

 

Com base em dados empíricos coletados e analisados no município de São Paulo (1992-1998), a partir de um design que exigiu cuidadosa articulação entre pesquisa descritiva (tipo levantamento) e pesquisa qualitativa (de aprofundamento) dentro do chamado paradigma indiciário de investigação — o trabalho:

a. Enfoca mortes de crianças e adolescentes ocorridas em família, em circunstâncias consideradas suspeitas;

b. Questiona como e por quê tais ocorrências são banalizadas através de dois tipos de explicações que não explicam;

b.1 anti-científicas assentadas na idéia de fatalidade;

b.2 pseudo-científicas baseadas na idéia de acidentalidade;

Tais explicações costumam ser dadas tanto por profissionais do Direito e da Saúde, quanto pelas próprias Famílias e sua resultante é a postura conformista diante dos fatos do tipo Requiem para as pequenas vítimas Pequenas.

c. Advoga a adoção de explicações científicas reveladoras das raízes histórico-críticas de produção e reprodução do fenômeno, reconceituado agora como Violência Fatal em Família, possibilitando uma abordagem preventiva das ocorrências enquanto Crônicas de Morte Anunciada e, portanto, como fatos absolutamente previsíveis.

 

Palavras-Chave: Crianças-Morte — Crianças-Violência — Violência Familiar

Ah! quem dera fosse a convivência

Um modo de aceitar
Diferenças reais e verdadeiras
Para que no nosso relacionar
O oculto pudesse respirar
Sem medo de desbancar
O verniz que congela a liberdade de se poder expressar

Evenice Santos Chaves (Despir-se de si mesmo)

Partindo da idéia de que ler significa aproximar-se de algo que acaba de ganhar existência1 e reconhecendo que a leitura é a mais civilizada das paixões2, voltei a reler o Projeto Multimídia que traz os resultados de uma pesquisa de sete anos, empreendida pelo Laboratório de Estudos da Criança (Lacri/Ipusp), e que foi publicada em 1998/1999. Trata-se de uma obra inédita - ao nível nacional e internacional - no trato de uma problemática triplamente maldita:

1. a da morte
2.
de crianças e adolescentes
3.
ocorrida em família,

Mas em circunstâncias suspeitas, a sugerir um possível envolvimento de pais e/ou responsáveis.

Sua publicação foi feita através de três veículos integrados ao Projeto Multimídia:

A. Livro denominado Infância e Violência Fatal em Família, contendo o relatório científico da pesquisa;
B. Cd-Rom denominado Requiem para as pequenas vítimas Pequenas, reunindo o Dossiê dos casos estudados;
C. Video denominado Crônicas de Morte Anunciada, envolvendo um documentário educativo de tipo interativo.

Levantando casos de mortes de crianças e adolescentes (até 18 anos) ocorridas em família e em circunstâncias suspeitas no município de São Paulo, 1992, a pesquisa empírica cobriu as etapas indicadas no Quadro 1, a seguir, com resultados numéricos correspondentes.

Quadro 1

Perfil da pesquisa empírica.

Pesquisa

   

A

 

B

 

C

 

D

Empírica

Etapas

Þ

Morte Denunciada

Þ

Morte Criminalizada

Þ

Morte Vivida

Þ

Violência Pesquisada

     

ß

 

ß

 

ß

 

ß

Resultados

   

434.546 Boletins de Ocorrência Policial consultados, nos quais foram constatados 953 casos de crianças / adolescentes falecidos: em circunstâncias a esclarecer - suicídios, homicídios, negligência, violência física e/ou sexual em família.

 

Dos 953 casos, foram encontrados 89 processos criminais distribuídos aos Fóruns criminais, dos quais:

· 52 finalizados/

em andamento;

· 16 deteriorados/

desaparecidos;

· 12 em fase de

localização;

· 9 inquéritos

não concluídos.

 

23 entrevistas na residência das famílias nas quais ocorreu o evento.

 

6 entrevistas na residência das famílias nas quais ocorreu o evento.

Através de um design metodológico cuidadosamente idealizado, os casos levantados foram exaustivamente estudados, articulando-se as abordagens descritiva e de aprofundamento dentro do chamado paradigma indiciário de investigação3, segundo o qual um caso intrigante (geralmente do ponto de vista policial) assemelha-se a uma obra de arte cuja autoria se pretende desvendar: exige sempre a consideração cuidadosa de sinais muitas vezes pequenos, circunscritos a pormenores pouco perceptíveis a um observador não treinado.

A análise de conteúdo4 (temática, categorial, estrutural) foi a técnica adotada para decifrar o sentido e o significado5 das mensagens acerca do óbito infanto-juvenil, contidas nos vários discursos levantados sobre o mesmo fato:

a. o discurso da Polícia (morte denunciada);
b. o discurso da Justiça (morte criminalizada);
c. o discurso das famílias (morte vivida).

Essas leituras possibilitaram a emergência de uma série de pseudo-explicações características, seja do discurso dos profissionais envolvidos, seja das famílias estudadas. São as explicações que não explicam por serem anti-científicas, assentadas, por exemplo, na idéia de fatalidade ou pseudo-científicas assentadas na idéia de acidentalidade ou loucura, por exemplo.

A Figura, a seguir, mostra que, enquanto mistificações da realidade e sinalizando, por hipótese, fenômenos imprevisíveis, inevitáveis e/ou inimputáveis, tais explicações falseadoras, longe de contribuírem para o esclarecimento das ocorrências, servem principalmente de cômodos álibis, capazes de excluírem pais ou responsáveis do círculo da culpabilidade.

Figura 1

Diagrama Semântico das Explicações que não explicam.

 

Extraída de Azevedo, M.A. e Guerra, V.N.A. (1998:161). Infância e Violência Fatal em Família. São Paulo: Iglu.

O mais grave é que tais explicações foram recorrentes tanto no discurso dos profissionais quanto das famílias, completando-se mutuamente e enclausurando as ocorrências de morte numa perspectiva, por assim dizer terminal, de colocar uma pedra em cima do ocorrido.

Felizmente, porém, a leitura da mesma documentação, por profissionais sensíveis à detecção de violências contra crianças e adolescentes possibilitou contrapor ao simplismo ideológico das pseudo-explicações, a necessária recategorização dos óbitos em termos de Violência Doméstica Fatal contra Crianças e Adolescentes, tal como se indica no Quadro 2, a seguir.

Quadro 2

Explicações Policiais, Jurídicas, Familiares e Científicas do mesmo evento morte.

EPaulo: Iglu.xtraído de Azevedo, M.A. e Guerra, V.N.A. (1998:162-163). em Família. São Infância e Violência Fatal

 

A partir do modelo explicativo interativo ou multicausal reproduzido na Figura 2, a seguir, e alicerçado na concepção histórico-materialista da sociedade, foi possível construir uma nova interpretação para as mortes estudadas. Uma interpretação que — por estar assentada em estudos e pesquisas realizados desde o século passado — permite entender essas mortes não mais como episódios isolados, ocorrências discretas e fortuitas, mas sim, como o trágico ápice de uma cadeia interativa de Violências Domésticas contra crianças e adolescentes, tal como se ilustra na Figura 3, a seguir.

Violências que — como a ciência já demonstrou — nada têm de casuais ou acidentais e que, portanto, são previsíveis, desde que se saiba ler os sinais denunciadores de sua provável ocorrência. Violências que, por vezes, costumam ser planejadas com muita antecedência, o que significa que, em certa medida, a criança ou adolescente vítima de violência doméstica fatal pode ter começado a morrer muito tempo antes do óbito ocorrer.

O contraponto entre as explicações não científicas e as explicações científicas foi particularmente esclarecedor na medida em que permitiu detectar duas posturas antagônicas acerca da morte de crianças e adolescentes em família:

— uma postura conformista assentada na crença ingênua de que o fenômeno decorreria de fatores individuais ou sociais incontroláveis, cuja atuação se poderia, quando muito, lamentar ex post facto. Uma postura do tipo Requiem para as pequenas vítimas Pequenas;

— uma postura preventiva assentada na consciência crítica de que a violência contra crianças e adolescentes é um fenômeno historicamente construído que se pode, portanto, desconstruir sempre e quando haja interesse em evitar sua (re)produção. Uma postura que considera os casos estudados como crônicas de morte anunciada.

Figura 2

Violência Doméstica Fatal contra Crianças e Adolescentes: Modelo Interativo ou Multicausal

Extraída de Azevedo, M.A. e Guerra, V.N.A. (1998:181. Infância e Violência Fatal em Família. São Paulo: Iglu.

Figura 3

A cadeia interativa de Violências Domésticas contra Crianças e Adolescentes.

Ao revisitar todo este trabalho, algum tempo depois de sua publicação, não pude deixar de indagar como se explicaria a emergência tão tardia da violência doméstica fatal como categoria explicativa mais adequada para um fenômeno tão antigo quanto a própria história da Humanidade? Mais ainda: o que justificaria a resistência dos profissionais do Direito, da Saúde, do Serviço Social, da Psicologia, da Educação etc. em adotar essa explicação, de preferência àquelas que acentuam a gratuidade do fenômeno?

Na perspectiva do construtivismo social, acredito que qualquer teoria é um artefato cultural e um produto histórico6.

A emergência da categoria explicativa da Violência Doméstica Fatal insere-se na história da emergência da própria Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes: uma história feita de negações e renegações.

Negações cujas raízes assentam:

a. no padrão das relações de poder entre gêneros e gerações, vigente em cada contexto social;
b. nos modelos de família institucionalizados em cada sociedade;
c. nas concepções de criança privilegiadas pela cultura local.

No caso concreto da sociedade brasileira, marcada pela dialética de um processo colonizador escravagista, a negação mais ou menos velada da Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes tem na ideologia do familismo, o caldo de cultura de que se nutre. Enquanto mito da Família Feliz, esta ideologia alimenta uma tríade de crenças de que pais e profissionais costumam ser reféns:

1. crença de que os pais são seres perfeitos e que, como deuses, têm poder de vida e morte sobre os filhos;
2. crença de que a criança é má, potencialmente perigosa, devendo ser colonizada, vigiada, punida sob pena de subverter a hierarquia familiar;
3. crença de que a casa é sempre o lugar mais seguro do mundo para as mulheres e crianças, em especial.

Esse mito — cimento ideológico do modelo autocrático de família patriarcal — impede que se tenha uma consciência clara de que as famílias nem sempre são felizes, de que o lar pode ser perigoso para os fracos de poder (mulheres, crianças, velhos...), de que os pais podem ser extremamente tóxicos para os filhos.

Esse mito procura fazer-nos esquecer do legado da mitologia greco-romana, enquanto figuras emblemáticas da violência passível de ocorrer nas relações entre pais e filhos:

· os dark fathers ou pais sombrios, representados por cronos e Saturno, devoradores dos próprios filhos;
· as red mothers ou mães sangüinárias, representadas por Medéia.

Pais que — no sentido real ou figurado — devoram os filhos, confirmando o que já se descreveu como a histórica Síndrome de Saturno ou a Lei do Pai, cuja versão propriamente canibal pode ser encontrada no nono e último círculo do inferno, da Divina Comédia de Dante, na figura de Ugolino, o Tirano de Pisa.

Destituído pelo povo, foi preso numa torre com os filhos.

Quando o desespero lhe inspira um gesto equívoco —morder as próprias mãos — os filhos lhe oferecem a própria carne para mitigar sua fome. Ugolino recusa. Morrem os filhos. E o pai acaba por lhes comer os cadáveres antes de, por sua vez, perecer7.

Uma versão mais metafórica — porém não menos literária — pode ser encontrada na Carta ao Pai, que Kafka escreveu em novembro de 1919, como uma espécie de acerto de contas com o pai tirânico.

É por intermédio da extraordinária imagem do pai estendido sobre o mapa-mundi que Kafka conseguiu figurar na Carta tanto a falta de espaço do filho oprimido quanto a violência sem fronteiras da dominação8.

O combate à ideologia do familismo só vai ser possível quando os profissionais do Direito, Psicologia, Serviço Social, Medicina, Pedagogia etc., forem capazes de despir-se de si mesmos, das armadilhas da falsa consciência a fim de poderem enxergar:

a infância como ela realmente é, ou seja, uma condição concreta de existência e que pode ser maravilhosamente boa ou extremamente adversa. Cada criança vive o processo de seu desenvolvimento de um modo social e psicologicamente distinto. Não é mesma coisa desenvolver-se num ambiente familiar opressivo e crescer numa família harmoniosa e tranqüila.

a criança como um ser diferente, mas não necessariamente inferior ou pior que os adultos. Um ser pequeno em tamanho, mas não necessariamente pequeno em capacidade e valor. Um ser que necessita proteção (enquanto em condição peculiar de desenvolvimento) e merece respeito (enquanto sujeito de direitos e deveres).

Para ser efetivo, o despir-se de si mesmo deverá ser praticado no bojo de programas de capacitação em que os profissionais —atuando em equipes multidisciplinares — aprendam:

· quando e por quê suspeitar da ocorrência de Violência Doméstica contra crianças e adolescentes;
· como e por quê acreditar na palavra da criança ou do adolescente que denuncia;
· quando, como e por quê proteger primeiro as crianças ou adolescentes para investigar depois as notificações de Violência Doméstica.

E por terem realmente aprendido, se tornem os profissionais capazes de que tanto carecemos.

· Profissionais da Saúde capazes de entender que a casa pode ser um barril de pólvora para as crianças e que ao adulto cabe sempre a responsabilidade de evitar riscos previsíveis e mortais.
· Profissionais do Serviço Social capazes de duvidar de alegações freqüentemente oferecidas pelos pais ou responsáveis para camuflar violências (tipo queda do beliche, do tanque etc.).
· Profissionais de Direito capazes de acreditar que as crianças podem ser testemunhas confiáveis, desde que se saiba interrogá-las de forma isenta e não intrusiva.
· Profissionais da Psicologia capazes de entender que as crianças dificilmente mentem quando chegam a denunciar violências.
· Profissionais da Educação capazes de ler pedidos de socorro, quando estes aparecem disfarçados em composições escritas, poesias, desenhos etc.

Numa palavra: Profissionais capazes de valorizar a criança e o adolescente e que, por isso mesmo, acreditam ser indispensável chegar antes que eles se tornem:

um prontuário médico

um boletim policial

um processo judicial

um dossiê psicossocial

uma notícia de jornal ou...

um corpo no necrotério!!!